sábado, 1 de março de 2008

Artistas de Todo Dia




São três horas da manhã e eu não consigo dormir. Estou sentada no PC e a luz azulada ilumina meu filho, que dorme serenamente e vai me expulsar da cama, queira eu ou não, em algumas horas. Não é nenhuma novidade, olhá-lo dormir foi uma constante no primeiro ano de vida,quando os médicos consideravam um milagre que estivesse vivo e não me garantiam por quanto tempo ele continuaria aqui. Vem dessa época o hábito de sempre verificar se ele respira, todas as vezes que eu acordo, mesmo sabendo que ele hoje está saudável como um touro.
Hoje, olhando pra ele as palavras do Mack rodam minha cabeça: "Dose para leão é ter que explicar sempre que autista não é artista escrito de forma errada. É viver repetindo que autismo não é doença e, portanto, não tem "cura". É ouvir: "Nossa ela é tão bonita, nem parece que é doente"
Ter um filho, que foge aos padrões do que a sociedade espera e classifica como normal, é mesmo matar um leão por dia. Dois nos fins de semana. É tentar explicar que ele tem o direito de conviver com outras crianças, de ser respeitado, de frequentar o parquinho, a escola, o cinema. Lutar diversas vezes, repetidamente, para garantir que ele tenha atendimento correto, apoio, dignidade. E de repente, num dia qualquer, assistir alguém escrever irresponsabilidades na net e justificá-las apenas na ausência de intenção, no "eu não queria", vazio e sem a menor intenção de reparar o que fez.
Autismo não é doença. Ninguém "pega". Não tem um vírus e nem uma vacina. Não tem um antibiótico ali na esqueina, que vai transformar da noite para o dia, o bebê que não olha nos seus olhos e não sorri, numa criancinha falante e comunicativa. Autismo é um exercício diário de reconquista, de reaproximação. É aprender a entrar no mundo do outro, aprender a conhecê-lo e a amá-lo com todas as suas particularidades.
E também não é como gripe ou sarampo que tem uma única forma e um único caminho de evolução. Dizer autismo é o mesmo que dizer cor....existem várias nuances, vários matizes. Cada um é, mais que nunca, um universo próprio e cheio de possibilidades.
Além deles, existem síndromes várias, que estão dentro do que se convencionou chamar de espectro autista. Existem autistas de auto desempenho tanto quanto existem autistas com deficiências mentais. Eles são louros, morenos, ruivos, altos, baixos, gordos ou magros. Eles sentem, vivem, choram...exatamente como eu e você, e ao mesmo tempo, de uma maneira só deles.
Meu filho tem Síndrome de Asperger, um tipo raro de autismo que atinge 0,36% da população e só foi incluída no código internacional de saúde em 1994. Em 80% dos casos, assim como no autismo clássico, seus portadores são meninos. Diferente do autismo clássico no entanto,em que o comprometimento da linguagem pode chegar a ausência de comunicação verbal, os portadores de asperger tem um desenvolvimento normal da fala em função da idade, mas apresentam uma fala rebuscada, pedante, "falam como mini intelectuais". Apresentam também movimentos esteriotipados, repetição de sons e frases(ecolalia), baixa capacidade de expressão facial, fixação em rotinas e, talvez, a característica mais impactante: a interpretação literal da linguagem falada. Eles levam tudo ao "pé da letra". Tem dificuldades de entender metáforas, ironia, sarcasmo e mentira.
Meu pequeno não tem freio social...ele diz o que pensa e não consegue entender por que alguns precisam mentir. Mentira, definitivamente, não é algo que ele consiga compreender. Não faço da condição do meu filho uma bandeira. O fato dele ter Asperger é só uma característica de sua vida, como ser magro, ter olhos castanhos e pé chato, mas não admito jamais que ele seja lesado em seus direitos. Isso não.
João Victor estuda, pratica esportes, usa o PC, briga na rua, leva bronca, fica de castigo...É tudo um mar de rosas? Não. Há dias em que me canso, em que me questiono. Há dias em que me pergunto por que comigo e não com o filho do vizinho, em que me irrito com mães, que dizem aos filhos que ele é maluco por que faz tratamento psiquiátrico, ou com blogueiras que escrevem que autismo "é vestir óculos cor de rosa da estupidez". Mas sempre há o dia seguinte.
E aí volto a frase do Mack, autista não é artista escrito errado, mas ser mãe e pai de um autista é, às vezes, ser meio artista. Fazer arte do impossível, do pouco comum, fazer a arte de todo dia, aquela que nasce do amor e empurra pra frente. É explicar várias vezes que ele pode saber todas os feriados de hoje até 2100 e mesmo assim não entender o que significa chover canivetes, que ele pode dominar um outro idioma e não ser capaz de amarrar os próprios sapatos...
Autistas não vestem óculos, não vivem uma estupidez cor de rosa. Conviver, criar, educar, AMAR uma criança autista é se jogar de cabeça num mundo que não é o seu e aprender a respeitá-lo em suas diferenças. É uma decisão, uma aventura, um modo de vida, mas é antes de tudo um gesto de amor.
 
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